Esclerose múltipla: quais os desafios atuais (e, afinal, o que ela é)? | Veja Saúde
O 30 de maio marca o Dia Mundial da Esclerose Múltipla, uma doença inflamatória, degenerativa e autoimune. Ela tem sintomas diferentes e tratamentos particulares em cada indivíduo. Mas os desafios da esclerose múltipla vão além da ciência e da medicina.
Associações como a Amigos Múltiplos da Esclerose (AME) lutam pela equidade no acesso a medicamentos e a mais direitos entre as pessoas diagnosticadas. Já entraremos nesses problemas – antes, alguns parágrafos sobre a doença em si.
O que é esclerose múltipla?
É uma doença inflamatória e degenerativa que atinge o sistema nervoso – que se expande do cérebro à coluna espinhal. Ela é também autoimune (quando o nosso sistema imunológico se volta contra o organismo). No caso, as defesas do corpo se voltam contra as bainhas de mielina, estruturas que garantem a transmissão de mensagens entre os neurônios.
Imagine a mielina como uma capinha de gordura que protege um fio elétrico (o axônio) usado como comunicação entre os neurônios. “Na esclerose múltipla, é como se os ataques começassem a desencapar o fio”, sintetiza Gustavo San Martin, que convive com a doença há 11 anos e é cofundador e diretor geral da AME. Se o fio fica sem proteção, as mensagens não chegam como deveriam – é uma espécie de curto-circuito.
Esse curto-circuito, por sua vez, gera sintomas como fadiga, visão embaçada, tontura, rigidez muscular e déficits cognitivos, explica o neurologista Denis Bichuetti, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Os sintomas iniciais variam. “O meu primeiro, por exemplo, foi a visão embaçada”, relata San Martin. Há diferenças na gravidade e na forma como esse processo de inflamação se manifesta.
O que são os surtos?
Os tão falados surtos relacionados à esclerose múltipla tem como definição médica sintomas neurológicos novos, com duração maior de 24 horas e sem ausência de febre ou infecção.
“De repente, surge uma fraqueza na perna, que vai piorando com o tempo. Mas que pode se resolver sozinha ou pelo menos parar de piorar entre três a quatro semanas”, explica a neurologista Inara Taís de Almeida, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (Abem).
Hoje, há medicamentos que aliviam e abreviam os surtos.
Quais são os tipos de EM?
Primária progressiva: essa corresponde a 15% dos casos e tende a ser mais agressiva. Há uma piora constante e gradual – quase como se os surtos não fossem embora.
Esclerose múltipla remitente-recorrente: essa representa 85% dos casos. Nesse tipo, os surtos vêm e vão. Parte dos paciente, no entanto, podem evoluir para uma forma progressiva (progressiva secundária) mais ou menos dez anos após o diagnóstico. Aí o quadro fica mais severo e complexo.
Quais são as causas?
Elas ainda são desconhecidas. Mas a ciência conseguiu a grupos e fatores de risco. Começando pelo fato de que é mais comum em mulheres e jovens de 20 a 40 anos.
“Há cerca de 200 alterações genéticas possíveis que levam à esclerose múltipla. Cada uma aumenta, em média, o risco de desenvolver a doença em torno de 1,3% a até 3%”, calcula Bichuetti.
Ou seja, quanto mais dessas mutações estiverem presentes, mais provável o surgimento da enfermidade. “Por outro lado, posso ter todo esse aparato genético e não desenvolvê-la”, pondera o neurologista.
Há pesquisas associando o consumo de alimentos ultraprocessados e ricos em sal ou a própria obesidade desde a adolescência com a esclerose múltipla, por exemplo. Mas ainda não se sabe se, de fato, essas questões aumentam o risco da doença.
Mais recentemente, descobriu-se que o vírus Epstein-Barr pode ajudar a desencadear a doença.
Sintomas da esclerose múltipla
Eles costumam surgir entre os 20 e 40 anos, e é preciso observar a evolução. “Todo mundo já sentiu tontura ou formigamento em uma parte do corpo. Só que no caso da esclerose múltipla, esses sintomas vão piorando em semanas”, diferencia Bichuetti.
Os sintomas mais comuns são:
- Visão embaçada ou dupla
- Dificuldade para andar (um cambaleio ou uma perna mais pesada que a outra)
- Formigamentos
- Alterações urinárias sem explicação
Para difundir o conhecimento de sintomas entre médicos de outras especialidades, Bichuetti criou um protocolo para ser divulgados nas unidades básicas de saúde do SUS, que ainda inclui:
- Dificuldade de marcha, quedas, tropeços e muita fadiga, especialmente em pessoas abaixo de 50 anos de idade
- Sintomas neurológicos transitórios, como fadiga, dificuldade de marcha, embaçamento visual, que pioram com o calor e podem melhorar em dias mais frios
- Dor neuropatica, como queimação, formigamento e cãibras frequentes em pessoas com menos de 50 anos
- História de múltiplas manifestações neurológicas como as descritas acima, que pioram e melhoram ao longo de anos, e que não são explicadas por outras doenças
Diagnóstico
A ressonância magnética é o carro-chefe dos exames na hora de investigar a esclerose múltipla. No indivíduo com a doença, esse método aponta lesões no cérebro.
Mas, isolada, a ressonância magnética não bate o martelo. “Essas lesões também podem decorrer de lúpus, HIV, hepatite B, tumores. Uma bateria de exames de sangue ajuda a descartar essas e outras doenças como artrite reumatoide. O indivíduo vai colher de 16 a 18 tubinhos de sangue”, conta Bichuetti.
Pode ser necessária ainda a coleta de liquor – quando é feita a punção de um líquido da medula óssea.
Tratamento
Se a esclerose tem múltiplos sintomas, o seu tratamento segue a mesma lógica. Cada paciente terá uma solução diferente.
Há o tratamento para aliviar os surtos com remédios e terapias contra dor, insônia, fadiga, depressão, rigidez muscular. Já os medicamentos de uso contínuo reduzem a atividade da doença, previnem as crises e até interrompem a progressão.
“No mundo, há hoje 16 tratamentos reconhecidos, e no Brasil são cerca de 13 medicamentos com bula aprovada pela Anvisa. Destes, nove estão disponíveis no SUS”, conta Bichuetti. “Nenhum pode ser visto como bala de prata”, completa.
Enquanto um fármaco menos agressivo já dá conta do recado em algumas pessoas, outras necessitam de terapias mais intensas, ou combinadas.
Medicamentos disponíveis
A lista de remédios para os diferentes tipos de esclerose múltipla cresceu nos últimos anos no Brasil, tanto na rede pública como na privada. Em 2018, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o remédio ocrelizumabe, da farmacêutica Roche, para as duas versões da doença: a remitente recorrente e a primária progressiva.
Tipos de medicamentos disponíveis
Imunomoduladores convencionais: são os mais antigos. Administrados por meio de injeções, têm potência baixa.
Imunomoduladores sintéticos: no SUS, esses comprimidos são prescritos quando a situação tem uma gravidade média.
Anticorpos monoclonais: grupo dos princípios ativos mais modernos e potentes. O problema é o custo elevado.
Terapias de apoio: Fisioterapia, suporte emocional e fortalecimento físico são essenciais para minimizar as sequelas
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Acesso ao tratamento
Os avanços da medicina, no entanto, ainda não estão disponíveis a todos. A busca pelo acesso ao melhor tratamento é a maior luta da AME, na visão de San Martin.
“Quem é diagnosticado com a esclerose múltipla do tipo progressiva não tem cobertura obrigatória pelo SUS de nenhum medicamento. O protocolo aprovado pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema de Saúde) se concentra na forma remitente-recorrente. E há algumas terapias indicadas que são consideradas ultrapassadas”, lamenta.
Saber o protocolo correto dentro de tantas especificidades também depende de médicos especializados. “Talvez nos grandes centros seja mais fácil encontrar profissionais com familiaridade para essas drogas, mas nas regiões mais afastadas essa personalização do tratamento é um desafio”, conta San Martin.
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Desemprego e equidade no tratamento são desafios
“Deve existir alguém com quem você já trabalho que foi diagnosticado com esclerose múltipla e você nunca soube”, aposta Bichuetti.
É que a doença pode ser silenciosa ou estar bem controlada, mas nem por isso livra o paciente de surtos incapacitantes. “A fadiga que eu sinto às vezes é aquela em que você dorme 16 horas e ela não passa. É difícil falar porque a língua enrola”, relata San Martin.
Há outros desses sinais que prejudicam a rotina, como a depressão, comum entre os diagnosticados, distúrbios do sono e alterações de humor.
Diante disso, Bichuetti coleciona relatos de pacientes que abriram o jogo sobre a doença a seus contratantes e acabaram demitidos. Tanto que em conjunto com a AME e com o apoio da Unifesp, há dois anos ele publicou um levantamento sobre o tema. Os dados apontaram que a taxa de desemprego entre pacientes quase dobra após o diagnóstico da doença: de 23% para 41%.
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“É preciso encarar a esclerose múltipla como qualquer doença crônica. Ela tem tratamento e não tira a capacidade da pessoa de trabalhar e de relacionar”, reforça Inara. Claro que alguns ajustes podem ser necessários, mas o paciente é capaz de desempenhar muito bem.
Dito isso, confira respostas para dúvidas comuns sobre a esclerose múltipla:
Atividade física é benéfica?
Pode parecer estranho usar exercícios físicos como tratamento de uma doença que tem a fadiga como um dos piores sintomas. Mas sim: os exercícios devem fazer parte da vida dos diagnosticados.
“A atividade física vai melhorar os sintomas que justamente eram empecilhos para se exercitar”, avalia Inara. O jeito de praticá-los é o que muda. “É preciso começar de forma lenta e gradual, e estamos falando de minutos por semana. Aos poucos, esse tempo aumenta e a pessoa começa a sentir diferença na qualidade de vida”, esclarece Inara.
Mulheres com esclerose múltipla podem engravidar?
Ter uma gestação não é contraindicado a essas pacientes, segundo Inara. Embora demande alguns cuidados, a gravidez tem inclusive um ponto positivo: ela ajuda a aliviar os sintomas.
“O sistema imune da pessoa com esclerose múltipla está muito ativo, por isso vêm os surtos. Já a gestação reduz essa atividade imunológica e faz a doença ficar mais quieta. A maior preocupação é o puerpério, porque aí os surtos podem voltar”, relata Inara.
De todo modo, há um cuidado extra com o tratamento. “Já existem medicações que podem ser utilizadas em alguns períodos da gestação, mas é preciso fazer um plano”, esclarece a médica.
Esclerose não é um problema de idosos?
O brasileiro ainda tende a relacionar o termo “esclerose” com “demência em idosos”. Só que não! Esse conceito errôneo prejudica pessoas a descobrirem a doença mais cedo.
“O indivíduo diagnosticado pode até ter uma alteração cognitiva relacionada à falta de atenção e dificuldade de concentração, mas a franca demência ocorre em apenas 5% dos pacientes que não recebem tratamento”, esclarece o neurologista.