Rápido e devagar: os paradoxos do tempo na medicina | Veja Saúde

Filmes, livros, séries, quadrinhos… Não faltam obras de ficção explorando o paradoxo temporal, com direito a personagens viajando pelo tempo para alterar fatos do passado a fim de modificar o futuro. Na realidade da atividade médica, o paradoxo temporal diz respeito aos minutos ou às horas que devemos dedicar ao paciente no presente para modificar seu futuro, ou seja, cuidar adequadamente do problema que o trouxe até nós e buscar remediá-lo ou minimizá-lo.

Nesse contexto, o que às vezes pode parecer gasto de tempo é, na verdade, um investimento. Investimento porque vai se refletir em ganhos na qualidade da assistência ao paciente e na melhor gestão do tempo do médico e da equipe de saúde, uma vez que informações úteis a um diagnóstico ou tratamento mais preciso foram captadas e as orientações pertinentes foram dadas no momento certo.

Porém, quando o profissional acha que está economizando tempo com uma consulta rápida e acredita que vai resolver tudo só pedindo exames incorre em dois pecados. Um é deixar de ouvir o paciente e investigar seus sintomas, fiando-se apenas nos resultados dos exames como guia para o diagnóstico ou o tratamento. O outro é o desperdício de recursos que impacta a sustentabilidade do sistema de saúde, inflando custos com exames desnecessários.

Aqui precisamos questionar: quantas doenças não podem ser diagnosticadas clinicamente? Não há ressonância magnética que aponte a causa de uma enxaqueca, por exemplo. Da mesma forma, nenhum exame laboratorial ou de imagem decifrará o gatilho de doenças que têm componentes psicossomáticos, como as gastrites e a síndrome do intestino irritável.

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Ouvir o paciente, explicar o diagnóstico e as opções de tratamento, exercitar a empatia para ajudar em suas dores (físicas e emocionais), orientá-lo e esclarecer dúvidas são aspectos que fazem parte do cuidado tanto quanto a aplicação objetiva dos conhecimentos técnicos do médico. Mas quanto tempo é preciso dedicar a isso? Respondo: o tempo adequado a cada caso.

Vou dar um exemplo simples, comum em meu consultório: o da cirurgia de hemorroida, que costuma atemorizar o paciente por causa do desconforto do pós-operatório. Se antes do procedimento ele já for informado de que poderá sentir dor, mas que irá para casa com um arsenal de medidas para lidar com ela — orientação para banho de assento e prescrição de laxantes, analgésicos, anti-inflamatórios ou mais uma medicação se tiver uma dor muito intensa —, tudo muda de figura.

O indivíduo se sentirá mais seguro por saber o que fazer e vai sentir menos dor, porque dor também depende de ansiedade. Com isso, o tempo “gasto” nas orientações prévias vira tempo ganho depois. Sem essas instruções, o paciente estaria ligando para se queixar da dor e pedindo ajuda, podendo até mesmo se deslocar até um hospital sem necessidade.

Há um estudo de pesquisadores do Beth Israel Deaconess Medical Center, nos Estados Unidos, com resultados bem curiosos. O trabalho envolveu pacientes com síndrome do intestino irritável, um distúrbio dos movimentos intestinais que provoca cólicas, prisão de ventre e/ou diarreia e é disparado por gatilhos emocionais. Não evolui para nenhuma condição mais grave, mas impacta a qualidade de vida.

Nessa pesquisa, os pacientes foram divididos aleatoriamente em grupos: um recebeu placebo (comprimido sem princípio ativo) e foi informado disso; outros dois receberam medicação ou pílulas de hortelã com formato igual à do remédio, sem saber quem estava tomando o quê. Adivinhe qual grupo apresentou melhora ao cabo de seis meses.

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Todos! A explicação mais plausível é que os voluntários em geral se beneficiaram das conversas regulares com os médicos nos retornos periódicos realizados durante o experimento.

Dedicar o tempo adequado ao relacionamento com o paciente tem a ver com a própria qualidade da formação médica, que precisa combinar o lado técnico e o humanístico. Com isso, o profissional saberá ajustar a janela necessária tanto para obter as informações relevantes para fazer o diagnóstico e propor o tratamento como para exercer seu papel de acolhimento. Essa relação, vale lembrar, inclui também os familiares.

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Alguns acreditam que a transformação digital diminuirá o tempo da consulta e que algoritmos tomarão decisões no lugar do médico. É uma visão equivocada.

Soluções tecnológicas ajudam a poupar tempo com aquilo que não agrega valor — por exemplo, facilitando o preenchimento do prontuário ou apresentando um gráfico com resultados de todos os exames do paciente ao longo dos anos, o que dispensa o trabalho de checar o histórico item por item. Os recursos digitais liberam tempo para o médico cuidar do paciente utilizando aquilo que realmente faz diferença: suas competências técnicas, bem como sua empatia e sensibilidade.

Eu costumo dizer que metade do tratamento é a atenção que dedicamos ao paciente (e familiares); o restante é a aplicação do conhecimento técnico. A transformação digital ajuda a ganhar tempo para nos dedicarmos a essas duas metades que, somadas, permitem fazer o atendimento como ele deve ser.

Urgências e tomadas rápidas de decisão fazem parte do dia a dia de médicos e cirurgiões. Mas, no relacionamento com o paciente e seu entorno, o ritmo não pode seguir acelerado.

Precisamos de tempo para interagir, examinar e dar apoio. Cabe ao médico, que abraçou essa carreira tão direcionada ao cuidado com o outro, dispor de tempo para isso. E cabe ao paciente exigir do médico esse tempo.

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