Zooterapia: o papel dos bichos em tratamentos de saúde | Veja Saúde
Foi a avó de Benjamin que incentivou os pais do menino a buscar informações sobre o transtorno do espectro autista. Ela reconhecia no neto gestos que via no filho de uma amiga, que já tinha o diagnóstico.
Depois de passar por diferentes médicos e encontrar apoio em outras famílias que vivenciaram situação parecida, os pais, Luiz Felipe e Aline Lummertz, de Porto Alegre, tiveram a confirmação: Benjamin, aos 3 anos, estava mesmo no espectro.
Consultando especialistas e lendo bastante a respeito, a família saiu em busca de tratamentos e recursos para estimular o desenvolvimento do pequeno.
Terapia ocupacional e sessões de fono e psicólogo começaram a fazer parte da rotina. Mas não só. Foi com terapeutas menos convencionais — e de quatro patas! — que Benjamin melhor se encaixou. Com quem? Os cavalos.
“Ele tem muita ligação com os bichos. Com cachorros, ele senta, olha, aproxima o nariz do focinho e começa a repetir os movimentos deles”, conta o pai, o bancário Luiz Felipe.
A conexão mais imediata, porém, veio com os equinos. Sempre com o acompanhamento de profissionais que zelam pelo bem-estar tanto do animal quanto do paciente, Benjamin estabeleceu um vínculo logo nas primeiras aulas de equitação. “Pensamos que ele ia se afastar do cavalo, mas já subiu e nos deu tchau”, ri o pai.
O contato com o bicho proporciona um momento único de relaxamento e interação para o garoto de Porto Alegre. “Como pais, acabamos querendo que tudo que ele faça seja algo funcional, mas descobrimos que não precisa ser assim. Quando ele chega perto do cavalo, tudo acontece de forma mais natural”, avalia Luiz.
Para além dos estímulos motores e da melhora no equilíbrio, o vínculo com os cavalos incentivou Benjamin a se comunicar e socializar com outras pessoas.
“No começo, ele não falava muito, mas já passou a comentar sobre os cavalos, lembrar o nome deles”, conta o pai. “Hoje vai ser com o Atlas”, diz o menino, animado antes da sessão, recordando o nome de um dos cavalos terapeutas.
Cavalos e cães estão na linha de frente da terapia assistida por animais, também conhecida como zooterapia.
Mas outras espécies também podem ser treinadas e convocadas para essa vertente que ganhou adeptos, projetos e estudos nos últimos anos.
Mais do que o convívio próximo com os bichos, a abordagem terapêutica recruta os animais como aliados na superação de sintomas, sequelas e doenças com repercussões físicas ou mentais — e em qualquer faixa etária.
Apesar de ser uma metodologia que voltou a ficar sob holofote há poucas décadas, o uso de animais como coadjuvantes em tratamentos de saúde
tem ascendência milenar. Hipócrates, o pai da medicina ocidental, já recorria a uma prática similar à equoterapia na Grécia antiga.
O desenvolvimento da técnica em sua versão moderna começou nos Estados Unidos nos anos 1970, quando se criou um protocolo oficial. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a equoterapia desde 1997.
Animais como os cavalos dão apoio na frente física e na psicológica. Hoje se tornam companheiros e coterapeutas de pessoas com autismo, depressão, traumas, paralisia, sequelas de AVC... Dão um estímulo e tanto ao cérebro humano.
“O cavalo faz um movimento de vai e vem que não só melhora o equilíbrio e o tônus muscular do paciente como favorece a formação de sinapses, as conexões entre os neurônios”, explica Paulo Cezar de Mello, professor de educação física da Universidade de Passo Fundo (RS) e coordenador do projeto de extensão em equoterapia da instituição.
Criado em 2003, o projeto gaúcho atende crianças diagnosticadas com transtorno do espectro autista e paralisia cerebral. Além dos passeios a cavalo, os jovens pacientes trabalham em “ilhas” de desenvolvimento, orientadas por estudantes de diferentes cursos da universidade.
“Temos a ilha de psicomotricidade, onde eles participam de brincadeiras com bola; a ilha de fonoaudiologia, em que exercitam a fala. Não é só colocar as crianças em cima do cavalo. Tem todo um trabalho pedagógico”, descreve Mello.
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Atendimento interdisciplinar mediado por humanos é um conceito importante na terapia assistida por animais. Exemplo disso se vê no tratamento de pessoas que sofreram algum trauma ou abuso.
“Muitas vezes, são crianças que tiveram experiências ruins com outro ser humano e possuem dificuldade de se abrir com um psicólogo ou psiquiatra. Os animais podem exercer o papel de ‘dissolver’ esse trauma em um primeiro momento, permitindo a intervenção com outros terapeutas depois”, ilustra a veterinária Daniela Gurgel, fundadora da ONG Natureza Conecta, em Itu (SP), que atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Na entidade, 45 animais — cães, cavalos, cabras, porcos, patos e até galinhas — fazem parte do convívio e auxiliam no atendimento. “O importante é que seja um animal calmo, capaz de entender que um carinho ou um movimento brusco não são uma ameaça, para não ocorrer uma reação de ataque ou medo”, esclarece Daniela.
Se o primeiro atributo para colocar um animal no time da zooterapia é ele estar acostumado ao convívio humano, é difícil encontrar algum mais qualificado que os cachorros.
Pode não ser lá muito ético que seu analista seja seu amigo, mas a exceção a esse limite parece ser a cinoterapia, como se chama a intervenção que envolve os cães. Conhecidos popularmente como os “melhores amigos” da nossa espécie, a relação entre eles e nós remonta a mais de 10 mil anos.
“O cão é extremamente domesticado para ser nosso companheiro incondicional”, afirma Silvana Prado, presidente da ONG Patas Therapeutas, em São Paulo. A organização promove visitas e intervenções com cachorros e outros animais em hospitais, residenciais de idosos e abrigos para crianças.
A presença dos animais incentiva a socialização e a autoestima, além de funcionar como uma espécie de “resgate” do mundo externo para quem está internado, reduzindo o estresse que pode atrapalhar a recuperação.
“Trabalhamos com hospitais infantis e costumamos receber o retorno de que, no dia da visita, as crianças tomam até menos medicação para dor”, relata Silvana.
A terapia com animais ainda não dispõe de uma regulamentação para entrar no SUS, embora um projeto de lei sobre o tema tramite em Brasília desde 2012.
Hoje o acesso se dá por meio de ONGs e centros privados, e as regras variam de acordo com a cidade, o estabelecimento ou o hospital apto a receber os bichos. E olha que os benefícios da convivência com outras espécies não se restringem à área da saúde.
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Ambientes ligados ao ensino podem tirar proveito dela. Em um experimento da Mars Petcare realizado durante a pandemia, 79% dos professores sentiram seus alunos menos estressados na sala de aula virtual quando estavam perto de um animal de estimação.
Agora, os especialistas gostam de ressaltar: seja para fins pedagógicos, seja para fins terapêuticos, o bicho é um agente a mais no cuidado. “O cão não é um remédio”, frisa Hélio Rovay, cinotécnico e presidente da ONG Medicão, em São Paulo.
“A função dele é ajudar a estabilizar o paciente para que o remédio e o tratamento todo funcionem de forma mais eficaz”, pontua. E isso não é pouca coisa numa reabilitação, longe disso, como prova uma das cadelinhas da Medicão.
A “cã-terapeuta” Hanna foi peça-chave na história do pequeno Pedro Henrique, à época com 5 anos e recuperando-se de um acidente que lhe perfurou diversos órgãos.
Ela devolveu o ânimo ao menino para sair da cama e completar as sessões de fisioterapia. “Foi como um passe de mágica”, comparou a mãe do garoto à imprensa.
Não à toa, Hanna chegou a ser homenageada pela Câmara de Vereadores de Campinas (SP) por seu trabalho.
O conceito da zooterapia
Para a interação com os bichos se enquadrar como uma terapia assistida por animais (TAA), é preciso ter sempre o acompanhamento de um profissional de saúde — médico, fisioterapeuta, psicólogo, terapeuta ocupacional etc.
Quando não há esse direcionamento e trabalho em conjunto, apenas o contato mais próximo com cães ou cavalos, fala-se em atividade assistida por animais (AAA) — e ela já pode promover benefícios, como melhora da socialização e da ansiedade.
Não há restrição de espécie para a terapia, mas o animal precisa ser cuidado e treinado para aceitar os imprevistos do convívio humano (como um puxão no rabo, por exemplo) sem reagir de forma violenta.
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Ter um pet já faz bem
Dezenas de pesquisas indicam vantagens da convivência diária
- Alergia
Ter contato com animais desde cedo torna o sistema imunológico mais preparado e menos ultrassensível e propenso a disparar reações alérgicas no futuro. - Sedentarismo
Levar o bicho para passear conta como atividade física. Um estudo britânico calculou uma chance até quatro vezes maior de caminhar 150 minutos por semana se você tem um cão. - Ânimo e humor
A parceria está associada a menos sintomas de ansiedade e depressão, pois tende a ocorrer uma maior produção de serotonina e outras moléculas boas para o humor. - Estresse
Além de afastarem a solidão, os pets teriam um “efeito calmante”. Pesquisas estimam níveis de estresse menores na companhia deles do
que junto a outros seres humanos.
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Zelando pelo bem-estar animal
Não é só o estado do paciente que deve ser levado em consideração na zooterapia. O próprio bicho e coterapeuta requer acompanhamento para não ser exposto a situações estressantes ou arriscadas durante o convívio com os seres humanos.
E cuidados básicos como vacinas em dia, vermifugação e alimentação adequada são, claro, indispensáveis. Entidades como a ONG Natureza Conecta seguem padrões definidos pela Associação Internacional de Organizações de Interação Humano-Animal.
“Um deles é o tempo de sessão da terapia: o animal só pode ficar de 45 a 50 minutos por dia. Mais do que isso, mesmo se bem acostumado, ele começa a se estressar”, explica a veterinária Daniela Gurgel, responsável pela ONG. No período livre, os animais são incentivados a manter seu comportamento natural, gastar energia e descansar.