Um caminho de cores e dores por trás da transição de gênero | Veja Saúde
Estima-se que a população de pessoas trans no mundo fique em torno de 0,1 a 2%. Mas o que seria a incongruência de gênero e qual a diferença para orientação sexual? Como acontece o processo de transição de gênero? Quais são os cuidados necessários e como estamos atendendo as pessoas trans? Saber as respostas para perguntas como essas é importante para todos os brasileiros. Aproveitando o Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de janeiro), vou abordá-las por aqui.
A incongruência de gênero ocorre quando um indivíduo não se identifica com o gênero pelo qual foi determinado ao nascimento. Já a orientação sexual é representada pelo afeto, ou atração física, que uma pessoa sente pela outra, independentemente do gênero.
A partir do momento que se reconhece a incongruência de gênero, inicia-se uma longa caminhada, em geral cheia de obstáculos. Um dos maiores desafios é a carência na oferta de ambientes especializados no atendimento a pessoas trans. Idealmente, essa assistência deveria ser conduzida por uma equipe multiprofissional, com psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, ginecologistas, fonoaudiólogos, cirurgiões na área de plástica e urologia etc.
Durante o processo de transição de gênero, busca-se principalmente a adequação das características físicas do gênero de identificação. Para isso, podemos usar hormônios que estimulem o desenvolvimento desses traços e mesmo cirurgias para um efeito mais definitivo.
Com a hormonioterapia, as mudanças corporais são alcançadas após dois ou três anos de tratamento. Nós receitamos hormônios semelhantes aos produzidos pelas pessoas cisgênero (quando a identidade coincide com sexo de nascimento), em doses consideradas normais.
Para desenvolvimento de um corpo feminino, usa-se estrogênio e, se necessário, um antiandrogênio para reduzir as características físicas estimuladas pela testosterona (exemplo: pelos faciais, ereção espontânea, oleosidade da pele). Para um corpo masculino, indica-se a testosterona. Entre os principais efeitos estão a suspensão dos ciclos menstruais, o aumento de pelos corporais e o ganho de massa muscular.
Infelizmente, percebemos que muitas pessoas iniciam por conta própria o uso das medicações, o que leva a risco de complicações clínicas — seja por tomar o remédio errado, seja por abusar na dose. Uma das consequências é a trombose venosa profunda, que pode causar embolia pulmonar. Há ainda risco de acidente vascular cerebral (AVC), infarto, hepatite medicamentosa, hipertensão etc.
Já as cirurgias podem ser complexas. Há o caso da neovagina, que visa criar um órgão genital feminino em mulheres trans. Ou técnicas experimentais, a exemplo do neofalus (construção de um pênis com todas suas funções). Essas e outras operações podem ter sérias complicações e devem ser realizadas por médicos experientes.
Outra barreira poucas vezes discutida é o preconceito. O Brasil é um dos recordistas mundiais em casos de transfobia. Esses episódios podem acontecer mais frequentemente durante o processo de afirmação de gênero, quando existe inclusive uma transição social. Hoje já contamos com algumas leis e portarias para proteger a pessoa trans. Elas garantem, por exemplo, o direito de alteração do registro civil, independentemente de o indivíduo ter feito algum procedimento hormonal ou cirúrgico. Basta que ele deseje alterar o nome para adequação de gênero.
Neste Dia Nacional da Visibilidade Trans, gostaria de reforçar que a pessoa trans deve ter livre acesso a todos serviços de saúde e educação. É um direito humano dela. O respeito e a empatia são fundamentais, e possibilitam uma maior inserção social dessa população na sociedade.
*Karen de Marca, endocrinologista e membro do departamento de Endocrinologia Feminina e Andrologia (DEFA), biênio 2021/2022, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). Também é membro da comissão temporária de Diversidade, Equidade e Inclusão