“Estamos pensando de maneira muito linear no tratamento do câncer” | Veja Saúde
Como mostramos na nossa reportagem de capa do mês de outubro, o tratamento do câncer está passando por uma verdadeira revolução.
Anticorpos conjugados a droga, CAR-T e novas imunoterapias deram esperança a casos complicados, mas os motivos que fazem uma pessoa não responder ao tratamento ou o tumor voltar ainda são um mistério.
Para responder questões como essas, nos próximos anos deve crescer o uso da inteligência artificial e outras tecnologias que ajudam a analisar mais profundamente as características genéticas dos tumores e dos pacientes.
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Como complemento à matéria que está nas bancas, conversamos com dois pesquisadores de destaque nesse campo, os israelenses Shai Rosenberg e Aron Popotzer, ambos do hospital Hadassah, em Israel, que passaram pelo Brasil na última semana.
Rosenberg e sua equipe foram os primeiros a desenvolver com sucesso um algoritmo que detecta mutações que causam câncer. A partir de um gene específico, o P53, ligado a muitos tumores, o programa mostrou uma precisão de mais de 95% em descobrir se as variantes de significado incerto são ou não perigosas.
Na conversa, ele explica sua pesquisa e discute as próximas fronteiras da ciência, enquanto Popotzer comenta as aplicações clínicas dessas novidades.
VEJA SAÚDE: Como o conhecimento sobre os aspectos moleculares dos tumores evoluiu nos últimos anos?
Shai Rosenberg: A partir de 2008, os cientistas passaram a sequenciar [“ler”] o código genético de uma ampla quantidade de tumores. Um tumor tem basicamente o mesmo DNA do que seu portador, mas com mutações que causam a doença.
Com o barateamento das técnicas de sequenciamento, fomos entendendo cada vez mais as características dessas mutações e como elas tornam os tumores muito diferentes uns dos outros.
Hoje, temos bancos de dados com mais de 11 mil tumores sequenciados, e não estamos olhando apenas para o DNA, mas também para o RNA [molécula que “traduz” o que está escrito no DNA e ordena a produção de proteínas] para entender o comportamento do tumor.
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E que diferença isso faz no tratamento?
Agora, entendemos que algumas mutações podem guiar o tratamento, como a mutação no gene EGFR, presente em 17% dos portadores de câncer de pulmão, e avançamos muito na medicina de precisão.
A próxima questão a ser respondida é por que alguns pacientes não se beneficiam desse tipo de tratamento, mesmo com uma mutação conhecida.
E também como escolher a melhor combinação de terapias, pois muitas vezes o paciente tem mais de uma mutação ou pode ter um conjunto de alterações ainda desconhecidas, capaz de interferir na resposta às terapias e na agressividade da doença.
Interessante. Outro ponto que parece desafiador é a questão do tumor mudar com o tempo. Pelo que entendi, essas mutações se tornam mais ou menos importantes, certo?
Sim. O tumor é um órgão evolucionário selecionado de acordo com o ambiente. É como a evolução darwiniana: algumas mutações tornam o tumor mais adaptado para crescer.
A cada proliferação celular, essa mutação pode ser herdada ou uma nova surgir. E é aleatório, parecido com os vírus: certas alterações não fazem diferença nenhuma, outras darão a ele, por exemplo, a capacidade de provocar metástase ou desenvolver resistência ao tratamento, e, portanto, tendem a prevalecer e ser transmitida para as próximas células.
Quando a maioria das células cancerígenas morre após um tratamento, pensamos que a doença desapareceu, mas algumas, com mutações bem raras, podem se tornar mais prevalentes graças ao favorecimento ambiental.
Ou seja, estamos entendendo que o tumor segue um curso evolucionário, e que alguns desses cursos se repetem em vários pacientes. Isso muda paradigmas, pois atualmente pensamos de maneira muito linear no tratamento do câncer.
E o que você pesquisa exatamente dentro dessa área?
Conhecer a fundo o que significam todas as mutações dos mais de 21 mil genes do tumor seria uma maneira de prever seu curso evolutivo e combinar terapias, incluindo as capazes de manter “quietos” genes que naquele momento não estão fazendo diferença na sobrevivência do tumor, mas que podem se tornar um problema no futuro.
O problema é que, hoje, a maioria das mutações descobertas é classificada como “de significado incerto” no desenvolvimento da doença. Por exemplo: somente em um gene, o P53, existem mais de 2,3 mil possibilidades de mudanças genéticas, que podem ser neutras ou extremamente agressivas.
Então, o que nós fazemos é usar o machine learning [tecnologia de aprendizado de máquina] para tentar conhecer mais mutações e seus comportamentos.
Para isso, alimentamos um algoritmo com informações sobre as alterações que temos certeza que causam câncer, as que temos certeza que não causam, e pedimos que ele interprete as que não temos certeza ainda. Em testes, ele já demonstrou 96,5% de precisão com o gene P53.
Mas são mais de 700 genes que podem estar ligados ao câncer, então agora estamos generalizando o algoritmo para que consiga analisar mais genes.
A ideia é que esse algoritmo desvende somente as mutações herdadas/germinativas ou as adquiridas?
Ele foi desenvolvido para as duas, mas agora estamos olhando para as germinativas [as que “nascem” com a pessoa].
Em geral, só 13% das pessoas que desenvolvem câncer têm uma mutação germinativa. Por outro lado, 47% destes pacientes têm uma mutação genética de relevância desconhecida.
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Hoje em dia, fazemos testes genéticos somente em pacientes selecionados porque não sabemos o que fazer em relação a todo esse universo de alterações.
E como tecnologias como essa poderão ser usadas no futuro?
Aron Popovtzer: Creio que, no fim do dia, nosso objetivo é de que o tratamento tanto de pacientes com tumores iniciais como avançados seja padronizado com a ajuda de algoritmos como os do Dr. Rosenberg.
Se pensarmos no tratamento oncológico atual, digamos que haja uma taxa de resposta de 50%. É ótimo, mas significa que a outra metade dos pacientes está recebendo tratamentos que não funcionarão tão bem para eles, e ainda podem causar efeitos colaterais.
Há uma ideia generalizada de que quanto mais agressivo você for nas intervenções, melhor. Mas isso não é necessariamente verdade. E se conseguirmos fazer testes como esses em mais pacientes, poderemos tomar decisões melhores na prática.
Poderemos identificar, por exemplo, quais são as cinco ou seis mutações mais importantes do tumor, sua relevância naquele caso específico e escolher quais devem ser tratadas de maneira precisa e personalizada.
Aqui, no Brasil, poucas pessoas têm acesso a testes genéticos. Você acha que essa tecnologia será acessível no futuro?
Popovtzer: Acredito que sim. Há 10 anos, esse tipo de teste não tinha praticamente nenhuma indicação aprovada pelas agências regulatórias. Já o sequenciamento de nova geração [tecnologia amplamente utilizada hoje] custava cerca de 8 mil dólares – valor que baixou para mil – e se tornou padrão para a investigação diagnóstica do câncer de pulmão e outros cenários.
Em mais 10 anos, os preços deverão ficar ainda mais baixos, queda fomentada pelo aumento da competição nesse mercado. E vale pontuar que o sequenciamento é a parte cara de tecnologias como as desenvolvidas pelo Dr. Rosenberg.