A experiência de quase morte entre pacientes cardiopatas | Veja Saúde
Por pouco, muito pouco mesmo, seu coração não parou de vez. E a sensação de ter esbarrado na morte chega a provocar sequelas de cunho psicológico graves, que não devem ser negligenciadas. Se antes de um ataque cardíaco havia um órgão com o qual se preocupar, agora são dois.
De acordo com artigo publicado na Revista da SOCESP – Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, A Clínica da Insuficiência Coronariana Aguda e a Interface Psíquica, escrito pelas psicólogas do Incor Sirlei Pereira Nunes e Mayara Medeiros Nóbrega, a consequência emocional dos males cardíacos pode ser atribuída ao simbolismo do coração, que é visto como centro do corpo.
Seguindo essa linha de raciocínio, sofrer um infarto ganha conotação de vida limitada e, a partir da proximidade do fim, não é difícil imaginar que apareçam sentimentos como impotência, fracasso, menos valia, culpabilidade, angústias e medo, mesmo depois que a situação cardíaca já está sob controle.
Adoecer é sempre uma experiência de ruptura, de suspensão, de descontinuidade do cotidiano, principalmente em condições agudas que envolvam o coração: não há um “dia melhor” para infartar ou um “momento certo” para ir ao pronto-socorro.
A doença sempre será um advento mal recebido, que acarreta sensações ruins, além de preocupações práticas com a família, o trabalho e tudo que fica pausado durante o processo de recuperação.
Por essas razões, muitos desfechos clínicos incluem depressão e estresse pós-traumático no primeiro ano após a manifestação da cardiopatia.
A condição, portanto, exige intervenção psicológica, o que se mostra eficaz não só para a superação psíquica como também para o enfrentamento dos problemas cardiológicos e seus fatores de risco, contribuindo para a melhora da qualidade de vida dos pacientes.
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Uma via de mão dupla
Da mesma maneira que o evento cardiovascular pode causar depressão, a recíproca é verdadeira: pessoas depressivas ou com outros transtornos de personalidade têm maior risco de serem vítimas de doenças orgânicas, como as cardiovasculares.
De acordo com o estudo do Incor, fatores psicossociais relacionados ao aumento de risco para patologias do coração estavam por trás de 40,2% dos casos de infarto.
Na psicologia, os indivíduos com mais propensão a desenvolver patologias cardiovasculares são os classificados como tipo A e tipo D:
- Tipo A: corresponde aos impacientes, agressivos, excessivamente ambiciosos, que se caracterizam por competitividade elevada, imediatismo, estrutura egóica rígida, ansiedade e nível de estresse elevado.
- Tipo D: estão listados os que primam por sentimentos de hostilidade, preocupações extremas, pessimismo, inibição social, afetividade negativa, introspecção e angústias.
Outro cenário que não deve ser ignorado é o da pandemia, que nos obrigou a mudar radicalmente nossa rotina, enquanto nos apresentava a fragilidade da vida.
Sedentarismo, piora na alimentação e uso/abuso de bebidas alcoólicas foram outros fatores de ordem prática que impactaram nosso emocional e se juntaram aos riscos somáticos para doenças cardíacas.
Diante dessas evidências, a lição para nós, profissionais da saúde, é de que não existe enfermidade que possa ser tratada isoladamente. Somos um sistema único que interage com o meio.
Dessa forma, não há como fechar um diagnóstico com base em um único sintoma. É preciso entender melhor as queixas, com visão dialética, porque as possibilidades de cura – seja do corpo ou da alma – aumentam quando os cuidados respeitam nossa integralidade.
*Rafael Trevizoli Neves é psicólogo e diretor do Departamento de Psicologia da SOCESP – Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo